Psico-oncologia

O impacto psicossocial do cancro

O impacto psicossocial do cancro

Abordar a temática do cancro sempre despertou medo entre nós. O cancro - ou as enfermidades oncológicas - pode ser definido como um crescimento incontrolável e anormal de células, levando ao desenvolvimento de neoplasias (tumores). Falamos de uma doença onde até ao final do séc. XIX não existia qualquer tratamento para mesma, o que contribuía para a ocultação dos diagnósticos clínicos e um percurso de sofrimento em silêncio por parte do doente. Com o desenvolvimento da ciência, a compreensão do cancro torna-se mais sólida, assistindo-se a processos de cura da doença oncológica, sobretudo, se o cancro fosse detetado e tratado precocemente. 

Para além da compreensão gradual da dimensão física da doença oncológica, desafios acrescidos começaram a surgir, particularmente na tarefa de transmitir as más notícias – o diagnóstico de cancro – ao paciente e sua família, assim como gerir as reações emocionais decorrentes do processo de adaptação à doença. De facto, não podemos esquecer que corpo e mente representam um todo em interação com o meio ambiente, sendo a saúde o reflexo deste equilíbrio.

O que é a Psico-Oncologia?

O cruzamento entre a Psicologia e a Oncologia pareceu, assim, inevitável. É graças aos trabalhos pioneiros de Jimmie Holland, uma médica psiquiatra que desenvolveu na década de 70 um serviço de atendimento e investigação sobre questões relacionadas com o cancro, que devemos a definição da Psico-Oncologia. A Psico-Oncologia é “uma subespecialidade da oncologia que procura estudar as duas dimensões psicológicas presentes no diagnóstico de cancro, nomeadamente o impacto do cancro no funcionamento emocional do/a doente, na sua família e nos profissionais de saúde envolvidos no tratamento; e o papel das variáveis psicológicas e comportamentais na incidência e sobrevivência do cancro”.

Com a emergência da Psico-Oncologia, assistiu-se a uma valorização crescente da experiência emocional do doente oncológico. A Psico-Oncologia assume um papel crucial, a saber:

  • Na compreensão da doença oncológica na sua dimensão física, psicológica, social e comportamental, com enfoque na compreensão do impacto psicológico do diagnóstico de cancro e respetivos tratamentos;
  • No alívio da sintomatologia física e psicológica em resultado dos tratamentos médicos realizados;
  • Na facilitação à adesão terapêutica, permitindo a redução dos níveis de stresse e a promoção da qualidade de vida do doente e sua família.
Clínica de Psicologia

A doença oncológica e as suas fases

Atualmente, falar de cancro já não é sinónimo de uma “sentença de morte”. No entanto, a sua incidência a nível mundial tem vindo a aumentar, aliado ao facto de a doença oncológica representar uma doença crónica e de prognóstico incerto, suscitando um sentimento de ameaça contínuo à própria vida. Ademais, os tratamentos realizados poderão ser profundamente invasivos, com efeitos secundários que provocam limitações ao nível da funcionalidade, diminuindo, em consequência, a perceção de qualidade de vida.

Desafios acrescidos existem se pensarmos em cada uma das fases que a doença oncológica pode assumir. A doença oncológica pode assumir diversas “trajetórias” provocando sentimentos, pensamentos e experiências distintas:

  • Pré-diagnóstico: fase marcada por um estado de preocupação recorrente e sentimentos de dúvida perante a existência de sintomas considerados estranhos e desconhecidos. A espera por explicações médicas, assim como a realização exaustiva de exames clínicos que levem a uma (des)confirmação de um diagnóstico, poderá ser profundamente angustiante.
  • Diagnóstico: momento onde os sentimentos predominantes remetem para o choque e a negação. Há a necessidade de procurar um sentido para o sucedido – “Porquê eu?” – pois o diagnóstico de cancro é considerado um evento traumático. Representa uma fase onde grandes quantidades de informação têm que ser processadas num curto espaço de tempo, potenciando a confusão mental já existente.
  • Tratamentos: embora os tratamentos realizados vão depender da situação clínica e condição do doente, esta é considerada a fase de maior dor, de sofrimento físico e psicológico. Será um período de confronto progressivo com os efeitos secundários das terapêuticas, efeitos que, por vezes, são invasivos e mutilantes, como a fadiga constante e as alterações físicas e cognitivas. Estas consequências levam a uma perda de autonomia e um estado de maior dependência, podendo gerar fortes sentimentos de impotência pessoal. Ademais, a necessidade de despender tempo na realização de tratamentos provoca inevitavelmente uma rotura com os contextos de vida significativos, como a família ou o contexto laboral. Deste modo, a fase de tratamentos é considerada a fase de maior potencial para o desenvolvimento de perturbações psicológicas, particularmente quadros clínicos de ansiedade e de depressão.
  • Remissão: é o período onde não são detetadas manifestações clínicas da doença. Representa uma fase de “lua-de-mel”, com o regresso gradual à normalidade e às rotinas de vida. Nesta fase poderão surgir reações emocionais contraditórias, ora de alegria e alívio pelo término dos tratamentos, ora de insegurança e desamparo, emergindo preocupações face ao futuro e mudanças surgidas. Este sentimento de insegurança poderá traduzir-se numa postura de hipervigilância em relação a sinais de recorrência da doença, assim como uma dependência excessiva dos contextos médicos – traduz-se pela chamada Síndrome de Damocles, isto é, a sensação de sentir uma “espada em cima da cabeça”, traduzindo o significado de viver constantemente com o medo da recaída da doença.
  • Sobrevivência: um período de remissão prolongado pode significar a cura da doença, considerando-se clinicamente o marcador temporal dos 5 anos de remissão da doença após o seu diagnóstico. Na fase da sobrevivência emerge a necessidade de redefinir os objetivos de vida, de realizar um balanço de todo o percurso de doença. Pode novamente ser uma fase de confronto com as sequelas resultantes da doença, a nível físico, psicológico, social e económico. Estudos têm demonstrado que os sobreviventes de cancro revelam níveis mais elevados de distress psicológico, apresentando um maior risco de desenvolver sintomatologia característica de uma perturbação de stresse pós-traumático. Gerir as expectativas do meio social poderá ainda ser difícil, pois alguns familiares e/ou amigos podem esperar que os sobreviventes revelem uma conduta normativa e assumam uma atitude extremamente positiva.
  • Recidiva: infelizmente, nem todas as trajetórias de doença terminam na fase de sobrevivência. A recidiva corresponde ao reaparecimento da doença, suscitando uma nova crise pessoal e familiar, com predomínio de sentimentos de desesperança, impotência e revolta. Esta nova experiência poderá ser mais devastadora que o diagnóstico inicial, uma vez que já existe conhecimento prévio do que se poderá enfrentar. Os medos são assim exacerbados, intensificando-se as ideias de morte.
  • Fase terminal: nesta fase, poderá existir uma procura desesperada de novas opiniões clínicas e tratamentos alternativos. Reações emocionais intensas predominam, como o desespero e o medo do sofrimento perante a consciência da própria morte. Os cuidados de natureza paliativa revelam-se cruciais nesta fase, onde o objetivo já não será a cura da doença, mas garantir o melhor conforto e qualidade de vida possíveis. Uma vez que são cuidados que podem prolongar-se dias, meses ou anos, é fundamental desenvolver formas de cuidado humanísticas e ir ao encontro das necessidades e desejos do doente e família.

O processo de adaptação à doença oncológica revela-se, assim, complexo, pautado por desafios singulares. Esta capacidade de maior ou menor adaptação à doença revela-se de extrema importância, traduzindo-se num fator de proteção ou de risco na qualidade de vida do doente.

Acompanhar o doente e respetiva família em cada fase do percurso da doença é imperativo, facilitando-se o próprio processo de adaptação e reduzindo-se os riscos emocionais. Como tal, a Psico-Oncologia desempenha um papel fundamental na avaliação e intervenção nas questões psicossociais e necessidades da população oncológica.

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